Pedro
Salviano Filho
Vimos numa edição passada desta coluna
http://bit.ly/MJX3OV como
era um pouco da vida em fazendas do sertão pernambucano no final do século 19 e
início do século 20, através do olhar do memorialista Ulysses Lins de
Albuquerque Desta vez vamos retroceder ao início do século 19 para conhecer,
pela visão de um viajante inglês, alguns aspectos da vida dos sertanejos
nordestinos, tentando, assim, elaborar um melhor perfil do nosso passado.
A
palavra sertão, usada desde a idade média para se referir a áreas situadas
dentro de Portugal, porém distantes de Lisboa, também é interpretada como
corruptela de “desertão” [Região,
Sertão, Nação, de Janaína Amado: http://bit.ly/KBJFbz pág.147].
A ocupação do sertão vem das “transformações políticas ocorridas com a
Capitania de Pernambuco, na segunda metade do século XVII, e sua anexação ao
contexto da América portuguesa para um novo projeto colonial de uma região
ainda não explorada: a conquista do sertão. A ideia da ocupação do sertão surge
da busca tanto de expandir a economia quanto de desafogar os centros urbanos de
elementos indesejados, como os vadios e pobres do açúcar. O sertão assumia
assim caráter de terra livre, de espaço aproveitável para onde poderia ser
empurrado esse contingente populacional”. O avanço da fronteira interna: a ocupação do sertão no século XVII,
de Mirian S Jesus e Paulo C. Possamai: [ http://bit.ly/JfjzcQ pág.5].
Porém,
devido a não linearidade cronológica e do ritmo da ocupação colonial no
interior nordestino, no final do século XVII os colonizadores do sertão
pernambucano ainda estavam na fase de conquista da terra dos índios para
efetivação do povoamento colonial nesta área [O vaqueiro: símbolo da liberdade e mantenedor da ordem no sertão,
de Tanya M. P. Brandão: http://bit.ly/JcZJPf pág.
123].
Prendemo-nos
desta vez a algumas informações pinçadas do interessante livro VIAGENS AO NORDESTE BRASILEIRO, de
Henry Koster (Volume XVII – Sec. Educação e Cultura, de Pernambuco,
Recife-1978, 2ª edição, 480 páginas). Considerado um dos mais importantes cronistas
nordestinos, filho de pais ingleses, Henry Koster nasceu em Lisboa. Falava
fluentemente o português e era tratado como Henrique da Costa no Brasil, para
onde veio, devido ao clima, tratar-se de tuberculose em 1809. Retornando à
Inglaterra em 1815 escreveu um livro e o publicou no ano seguinte. Pelo
recrudescimento da doença voltou ao Brasil em 1817 onde faleceu em 1820. Luís
da Câmara Cascudo, no seu Prefácio do
tradutor revela que Henry Koster chegara a Pernambuco justamente na melhor
hora, dezembro de 1809.
E
continua Câmara Cascudo em seu prefácio: “O depoimento de Koster é o primeiro,
cronologicamente, sobre a psicologia, a etnografia tradicional do povo
nordestino, o sertanejo no seu cenário. Depoimento completo, apaixonado de
pormenores, rico de cor, de movimento, de notícia. Antes dele nenhum
estrangeiro atravessara o Sertão do nordeste, do Recife a Fortaleza, em época
de seca, viajando em “comboio”, bebendo água de “borracha”, comendo
carne-assada, dormindo debaixo das árvores, tão integralmente adaptado ao mundo
que escolhera para viver que suas notas parecem de um patrício letrado, com
maior ousadia para deixar os centros citadinos e aventurar-se no sertão bravo,
bruto, distante. Ninguém evocará sem simpatia as jornadas de Koster, seu comunicante
afeto a todas as manifestações da vida que o cercava. Comendo o pirão de
farinha de mandioca, a banana comprida, banhando-se nos rios de enxurrada,
viajando a cavalo, a pé, de rede, abrigado debaixo de couros enquanto desaba o
temporal e no escurão urram as onças, centenas de traços o situam como um
familiar, um velho parente que conheceu o encanto das casas grandes, a preguiça
faustosa dos senhores de engenho, as histórias assombrosas da escravaria, o
pavor dos bichos terríveis que andam de noite. Em superfície e profundeza, para
a época, ninguém fixou a sociedade pernambucana, a sociedade dos fazendeiros do
nordeste, a psicologia do senhor de engenho, o mundo escravo, como Henry
Koster. Fixou porque viveu intensamente
essa existência que conhecemos descrita por mão contemporânea ou olhos atuais.
Koster era contemporâneo aos Capitães-Mores, viu as selas altas, aparelhadas de
prata, o Entrudo furioso, as reixas nas residências senhoriais, escuras e
sinistras pelo silêncio morno e penumbra aristocrática”.[Pág.20].
Assim,
Henry Koster, entre as muitas preciosidades registradas em seu livro,
mostra-nos que:
«Sua roupa consistia em grandes calções ou polainas de
couro taninado, mas não preparado, de cor suja de ferrugem, amarrados da cinta
e por baixo víamos as ceroulas de algodão onde o couro não protegia. Sobre o
peito havia uma pele de cabrito, ligada para detrás com quatro tiras, e uma
jaqueta, também feita de couro, a qual é geralmente atirada num dos ombros. Seu
chapéu, de couro, tinha a forma muito baixa e com as abas curtas. Tinha
calçados os chinelos da mesma cor e as esporas de ferro eram sustidas nos seus
pés nus por umas correias que prendiam os chinelos e as esporas. Na mão direita
empunhava um longo chicote e, ao lado, uma espada, metida num boldrié que lhe
descia da espádua. No cinto, uma faca, e um cachimbo curto e sujo na boca. Na
parte posterior da sela estava amarrado um pedaço de fazenda vermelha, enrolada
em forma de manto, que habitualmente contém a rede e uma muda de roupa, isto é,
uma camisa, ceroulas e, às vezes, uma calça de Nanquim. [Em meados do século
XVIII e XIX as fazendas de Nanquim, tecidas na China, foram usadíssimas no
Brasil. Eram tecidos de algodão e de ganga amarela, azul e vermelha]. Nas
bruacas que pendiam de cada lado da sela, conduzem geralmente farinha e a carne
assada no outro lado, e o isqueiro de pedra (as folhas servem de mecha), fumo e
outro cachimbo sobressalente. A todo esse equipamento, o sertanejo junta ainda
uma pistola, cujo cano longo desce para coxa esquerda, e tudo seguro. A marcha
comum do cavalo é um passo que se aproxima do pequeno trote; assim os cavalos
sertanejos adquiriram o hábito de arrastar as patas trazeiras, levantando
poeira. A cor do sertanejo é morena, e mesmo os que nascem brancos se tornam
depois, com a diária exposição ao sol, completamente taninados, como as roupas
que usam. A gravura anexa dará uma ideia de qualquer sertanejo, tal qual é
visto todos os dias no Recife. A cor do couro representado na gravura é mais
brilhante que a roupa vestida comumente porque o desenho foi feito sobre modelo
ainda não muito usado.» [Pág. 107]
«Creio que é, sem dúvida, possível melhorar cavando poços,
construindo reservatórios para água pluvial e sobretudo plantando árvores.» [Pág. 110 – Referindo-se à seca, isso
em 1810! Mais sobre SECA em http://bit.ly/hRvT1E ].
«As casas tinham apenas o pavimento térreo, e algumas
eram rebocadas e caiadas de branco, mas as paredes de muitas conservavam sua
cor natural, por dentro e por fora, e o chão estava em seu estado bruto.
Somente com grande esforço nessa terra onde a água é escassa, os moradores
conseguem manter-se asseados. Os brasileiros, mesmo de classes inferiores, em
todas as castas, têm alguns hábitos que se ligam aos costumes da vida selvagem,
são de notável asseio em suas pessoas. Um dos maiores incômodos para um
brasileiro é o lugar onde residir ficar distanciado de um rio ou poço d´água
onde se possa banhar.» [Pág 112].
«...o Sertanejo tem sempre com ele a mulher
e os filhos, vivendo em comparativo conforto. As casas são pequenas e
construídas com barro e bastante abrigadas para o clima, e cobertas com telhas
quando podem adquirir, ou geralmente com folhas de carnaúbas. As redes
usualmente tomam o lugar dos leitos, sendo mais confortáveis e mais
frequentemente utilizadas como cadeiras. Algumas residências têm mesa mas o uso
comum é a família acocorar-se derredor
de uma esteira, com as tigelas, cabaços e travessas no centro, e ai comer sua
refeição, sobre o solo. Facas e garfos não são muito conhecidos e, nas classes
pobres, nenhum uso possuem. É um costume em todas as casas, das altas às baixas
ordens sociais, desde muito tempo e praticado em toda parte que visitei,
levar-se, em bacia de prata ou de barro e mesmo numa cuia, com toalha de
cambraia, franjada ou pedaço de tecido de algodão feito no país, para lavar as
mãos depois que os convivas se assentam para comer. Esta mesma cerimônia, ou
ato de asseio necessário, tem lugar quando a refeição termina....»
[Pág.159].
«São ótimos cavaleiros e as selas
altas, à portuguesa, parecem bem cômodas. Nunca vi uma brasileira montar a
cavalo à maneira dos homens, como ocasionalmente reparei em Portugal. O
trabalho feminino consiste inteiramente nos serviços domésticos. Os homens
tiram o leite das vacas e cabras. As mulheres fiam e se ocupam nas tarefas de
agulha. Nenhuma mulher, de condição livre, aceitará um encargo ao ar livre,
exceto ir buscar, acidentalmente, água ou lenha, quando o homem não está em
casa. As crianças geralmente andam despidas até certa idade e se pode ver no
Recife meninos de seis e sete anos correndo pelas ruas sem qualquer peça de
roupa.» [Pág.160].
«O interior de Pernambuco, Rio
Grande, Paraíba e Ceará não contém, propriamente, gado selvagem. Duas vezes por
ano os vaqueiros de várias fazendas se reúnem com o fim de apanhar o gado. As
vacas são levadas, de toda a parte, para uma área em frente da casa e aí,
cercadas por numerosos cavaleiros, são impelidas para os espaçosos currais.
Isto feito, desmontam os homens e se alguma vaca se torna furiosa, como sucede,
um laço pelos cornos é bastante para prendê-la bem ou, ainda outro meio é
adotado, que é passar o laço numa pata traseira, e trazer a corda enrolando
completamente o animal, sendo fácil derrubá-lo. Os bezerros são presos sem
grandes dificuldades e marcam-lhe a coxa direita, com ferro incandescente, com
que é feito o sinal, anteriormente fixado pelo dono, como sua marca privativa.» [Pág. 163].
«A alimentação dos sertanejos
consiste principalmente de carnes, nas suas três refeições, às quais ajuntam a
farinha de mandioca reduzida a uma pasta, ou arroz, que às vezes o substitui. O
feijão, chamado comumente na Inglaterra “favas francesas”, é a iguaria
favorita. Deixam-no crescer em grãos só o colhendo quando estão completamente
duros e secos. Surpreendeu-me verificar o limitado emprego do milho como
mantimento, embora algumas vezes usado. A despeito de tudo, fazem uma pasta com
a carnaúba e vi comer carne com coalhada. Os vegetais verdes não são conhecidos
em seu uso e riram à ideia de comer qualquer espécie de salada. Os frutos
selvagens são numerosos e podem ser colhidos abundantemente, mas poucos tipos
são cultivados, entre esses a melancia e a bananeira. O queijo do sertão é
excelente quando fresco mas ao fim de quatro ou cinco semanas fica duro e
coriáceo. Poucas pessoas fabricam manteiga, batendo o leite em garrafas comuns.
Trata-se, entretanto, de experiências pessoais e não uma prática geral. Nas
próprias cidades do sertão a rançosa manteiga da Irlanda é a única que se pode
obter. Onde as terras permitem, plantam mandioca, arroz etc., mas a grande
parte dos alimentos é vegetal e provém dos distritos mais férteis, vizinhos, os
vales e a fraldas dos Cariris, serra do Teixeira e outras serras da região.»
[Pág. 166].
«O comércio no Sertão consiste em
receber uma pequena quantidade de manufaturas europeias; os tecidos de algodão,
dos quais uma boa parte é fiado na região, uma pequena porção de louça de barro
branco e quantidade considerável de cerâmica escura, feita no local na maior
parte pelos indígenas que vivem nos distritos onde existe o barro próprio para
sua fabricação; aguardente em raros barris; manteiga, fumo, rapé, açúcar ou
melado em formas, esporas, freios para bridas e outros acessórios para seus
cavalos, excetuando as selas as quais, em porção sensível, vêm dos próprios
distritos; ornamentos de ouro e prata encontram mercado com certos preços. Os
mascates vêm de povoação em povoação, de fazenda em fazenda, trocando suas
mercadorias por gado de todo tipo, queijos e couros de bois.» [Pág. 167].