segunda-feira, 28 de maio de 2012

A vida no sertão nordestino no início do século 19


Pedro Salviano Filho

Vimos numa edição passada desta coluna http://bit.ly/MJX3OV  como era um pouco da vida em fazendas do sertão pernambucano no final do século 19 e início do século 20, através do olhar do memorialista Ulysses Lins de Albuquerque Desta vez vamos retroceder ao início do século 19 para conhecer, pela visão de um viajante inglês, alguns aspectos da vida dos sertanejos nordestinos, tentando, assim, elaborar um melhor perfil do nosso passado.
            A palavra sertão, usada desde a idade média para se referir a áreas situadas dentro de Portugal, porém distantes de Lisboa, também é interpretada como corruptela de “desertão” [Região, Sertão, Nação, de Janaína Amado: http://bit.ly/KBJFbz pág.147].  A ocupação do sertão vem das “transformações políticas ocorridas com a Capitania de Pernambuco, na segunda metade do século XVII, e sua anexação ao contexto da América portuguesa para um novo projeto colonial de uma região ainda não explorada: a conquista do sertão. A ideia da ocupação do sertão surge da busca tanto de expandir a economia quanto de desafogar os centros urbanos de elementos indesejados, como os vadios e pobres do açúcar. O sertão assumia assim caráter de terra livre, de espaço aproveitável para onde poderia ser empurrado esse contingente populacional”. O avanço da fronteira interna: a ocupação do sertão no século XVII, de Mirian S Jesus e Paulo C. Possamai: [ http://bit.ly/JfjzcQ  pág.5].
            Porém, devido a não linearidade cronológica e do ritmo da ocupação colonial no interior nordestino, no final do século XVII os colonizadores do sertão pernambucano ainda estavam na fase de conquista da terra dos índios para efetivação do povoamento colonial nesta área [O vaqueiro: símbolo da liberdade e mantenedor da ordem no sertão, de Tanya M. P. Brandão: http://bit.ly/JcZJPf  pág. 123].
            Prendemo-nos desta vez a algumas informações pinçadas do interessante livro VIAGENS AO NORDESTE BRASILEIRO, de Henry Koster (Volume XVII – Sec. Educação e Cultura, de Pernambuco, Recife-1978, 2ª edição, 480 páginas). Considerado um dos mais importantes cronistas nordestinos, filho de pais ingleses, Henry Koster nasceu em Lisboa. Falava fluentemente o português e era tratado como Henrique da Costa no Brasil, para onde veio, devido ao clima, tratar-se de tuberculose em 1809. Retornando à Inglaterra em 1815 escreveu um livro e o publicou no ano seguinte. Pelo recrudescimento da doença voltou ao Brasil em 1817 onde faleceu em 1820. Luís da Câmara Cascudo, no seu Prefácio do tradutor revela que Henry Koster chegara a Pernambuco justamente na melhor hora, dezembro de 1809. 
            E continua Câmara Cascudo em seu prefácio: “O depoimento de Koster é o primeiro, cronologicamente, sobre a psicologia, a etnografia tradicional do povo nordestino, o sertanejo no seu cenário. Depoimento completo, apaixonado de pormenores, rico de cor, de movimento, de notícia. Antes dele nenhum estrangeiro atravessara o Sertão do nordeste, do Recife a Fortaleza, em época de seca, viajando em “comboio”, bebendo água de “borracha”, comendo carne-assada, dormindo debaixo das árvores, tão integralmente adaptado ao mundo que escolhera para viver que suas notas parecem de um patrício letrado, com maior ousadia para deixar os centros citadinos e aventurar-se no sertão bravo, bruto, distante. Ninguém evocará sem simpatia as jornadas de Koster, seu comunicante afeto a todas as manifestações da vida que o cercava. Comendo o pirão de farinha de mandioca, a banana comprida, banhando-se nos rios de enxurrada, viajando a cavalo, a pé, de rede, abrigado debaixo de couros enquanto desaba o temporal e no escurão urram as onças, centenas de traços o situam como um familiar, um velho parente que conheceu o encanto das casas grandes, a preguiça faustosa dos senhores de engenho, as histórias assombrosas da escravaria, o pavor dos bichos terríveis que andam de noite. Em superfície e profundeza, para a época, ninguém fixou a sociedade pernambucana, a sociedade dos fazendeiros do nordeste, a psicologia do senhor de engenho, o mundo escravo, como Henry Koster. Fixou  porque viveu intensamente essa existência que conhecemos descrita por mão contemporânea ou olhos atuais. Koster era contemporâneo aos Capitães-Mores, viu as selas altas, aparelhadas de prata, o Entrudo furioso, as reixas nas residências senhoriais, escuras e sinistras pelo silêncio morno e penumbra aristocrática”.[Pág.20].
            Assim, Henry Koster, entre as muitas preciosidades registradas em seu livro, mostra-nos que:
            «Sua roupa consistia em grandes calções ou polainas de couro taninado, mas não preparado, de cor suja de ferrugem, amarrados da cinta e por baixo víamos as ceroulas de algodão onde o couro não protegia. Sobre o peito havia uma pele de cabrito, ligada para detrás com quatro tiras, e uma jaqueta, também feita de couro, a qual é geralmente atirada num dos ombros. Seu chapéu, de couro, tinha a forma muito baixa e com as abas curtas. Tinha calçados os chinelos da mesma cor e as esporas de ferro eram sustidas nos seus pés nus por umas correias que prendiam os chinelos e as esporas. Na mão direita empunhava um longo chicote e, ao lado, uma espada, metida num boldrié que lhe descia da espádua. No cinto, uma faca, e um cachimbo curto e sujo na boca. Na parte posterior da sela estava amarrado um pedaço de fazenda vermelha, enrolada em forma de manto, que habitualmente contém a rede e uma muda de roupa, isto é, uma camisa, ceroulas e, às vezes, uma calça de Nanquim. [Em meados do século XVIII e XIX as fazendas de Nanquim, tecidas na China, foram usadíssimas no Brasil. Eram tecidos de algodão e de ganga amarela, azul e vermelha]. Nas bruacas que pendiam de cada lado da sela, conduzem geralmente farinha e a carne assada no outro lado, e o isqueiro de pedra (as folhas servem de mecha), fumo e outro cachimbo sobressalente. A todo esse equipamento, o sertanejo junta ainda uma pistola, cujo cano longo desce para coxa esquerda, e tudo seguro. A marcha comum do cavalo é um passo que se aproxima do pequeno trote; assim os cavalos sertanejos adquiriram o hábito de arrastar as patas trazeiras, levantando poeira. A cor do sertanejo é morena, e mesmo os que nascem brancos se tornam depois, com a diária exposição ao sol, completamente taninados, como as roupas que usam. A gravura anexa dará uma ideia de qualquer sertanejo, tal qual é visto todos os dias no Recife. A cor do couro representado na gravura é mais brilhante que a roupa vestida comumente porque o desenho foi feito sobre modelo ainda não muito usado.»  [Pág. 107]
«Creio que é, sem dúvida, possível melhorar cavando poços, construindo reservatórios para água pluvial e sobretudo plantando árvores.» [Pág. 110 – Referindo-se à seca, isso em 1810! Mais sobre SECA em http://bit.ly/hRvT1E ].
            «As casas tinham apenas o pavimento térreo, e algumas eram rebocadas e caiadas de branco, mas as paredes de muitas conservavam sua cor natural, por dentro e por fora, e o chão estava em seu estado bruto. Somente com grande esforço nessa terra onde a água é escassa, os moradores conseguem manter-se asseados. Os brasileiros, mesmo de classes inferiores, em todas as castas, têm alguns hábitos que se ligam aos costumes da vida selvagem, são de notável asseio em suas pessoas. Um dos maiores incômodos para um brasileiro é o lugar onde residir ficar distanciado de um rio ou poço d´água onde se possa banhar.» [Pág 112].
           
            «...o Sertanejo tem sempre com ele a mulher e os filhos, vivendo em comparativo conforto. As casas são pequenas e construídas com barro e bastante abrigadas para o clima, e cobertas com telhas quando podem adquirir, ou geralmente com folhas de carnaúbas. As redes usualmente tomam o lugar dos leitos, sendo mais confortáveis e mais frequentemente utilizadas como cadeiras. Algumas residências têm mesa mas o uso comum é a família acocorar-se  derredor de uma esteira, com as tigelas, cabaços e travessas no centro, e ai comer sua refeição, sobre o solo. Facas e garfos não são muito conhecidos e, nas classes pobres, nenhum uso possuem. É um costume em todas as casas, das altas às baixas ordens sociais, desde muito tempo e praticado em toda parte que visitei, levar-se, em bacia de prata ou de barro e mesmo numa cuia, com toalha de cambraia, franjada ou pedaço de tecido de algodão feito no país, para lavar as mãos depois que os convivas se assentam para comer. Esta mesma cerimônia, ou ato de asseio necessário, tem lugar quando a refeição termina....» [Pág.159].
            «São ótimos cavaleiros e as selas altas, à portuguesa, parecem bem cômodas. Nunca vi uma brasileira montar a cavalo à maneira dos homens, como ocasionalmente reparei em Portugal. O trabalho feminino consiste inteiramente nos serviços domésticos. Os homens tiram o leite das vacas e cabras. As mulheres fiam e se ocupam nas tarefas de agulha. Nenhuma mulher, de condição livre, aceitará um encargo ao ar livre, exceto ir buscar, acidentalmente, água ou lenha, quando o homem não está em casa. As crianças geralmente andam despidas até certa idade e se pode ver no Recife meninos de seis e sete anos correndo pelas ruas sem qualquer peça de roupa.» [Pág.160].
            «O interior de Pernambuco, Rio Grande, Paraíba e Ceará não contém, propriamente, gado selvagem. Duas vezes por ano os vaqueiros de várias fazendas se reúnem com o fim de apanhar o gado. As vacas são levadas, de toda a parte, para uma área em frente da casa e aí, cercadas por numerosos cavaleiros, são impelidas para os espaçosos currais. Isto feito, desmontam os homens e se alguma vaca se torna furiosa, como sucede, um laço pelos cornos é bastante para prendê-la bem ou, ainda outro meio é adotado, que é passar o laço numa pata traseira, e trazer a corda enrolando completamente o animal, sendo fácil derrubá-lo. Os bezerros são presos sem grandes dificuldades e marcam-lhe a coxa direita, com ferro incandescente, com que é feito o sinal, anteriormente fixado pelo dono, como sua marca privativa.»  [Pág. 163].
            «A alimentação dos sertanejos consiste principalmente de carnes, nas suas três refeições, às quais ajuntam a farinha de mandioca reduzida a uma pasta, ou arroz, que às vezes o substitui. O feijão, chamado comumente na Inglaterra “favas francesas”, é a iguaria favorita. Deixam-no crescer em grãos só o colhendo quando estão completamente duros e secos. Surpreendeu-me verificar o limitado emprego do milho como mantimento, embora algumas vezes usado. A despeito de tudo, fazem uma pasta com a carnaúba e vi comer carne com coalhada. Os vegetais verdes não são conhecidos em seu uso e riram à ideia de comer qualquer espécie de salada. Os frutos selvagens são numerosos e podem ser colhidos abundantemente, mas poucos tipos são cultivados, entre esses a melancia e a bananeira. O queijo do sertão é excelente quando fresco mas ao fim de quatro ou cinco semanas fica duro e coriáceo. Poucas pessoas fabricam manteiga, batendo o leite em garrafas comuns. Trata-se, entretanto, de experiências pessoais e não uma prática geral. Nas próprias cidades do sertão a rançosa manteiga da Irlanda é a única que se pode obter. Onde as terras permitem, plantam mandioca, arroz etc., mas a grande parte dos alimentos é vegetal e provém dos distritos mais férteis, vizinhos, os vales e a fraldas dos Cariris, serra do Teixeira e outras serras da região.» [Pág. 166].
            «O comércio no Sertão consiste em receber uma pequena quantidade de manufaturas europeias; os tecidos de algodão, dos quais uma boa parte é fiado na região, uma pequena porção de louça de barro branco e quantidade considerável de cerâmica escura, feita no local na maior parte pelos indígenas que vivem nos distritos onde existe o barro próprio para sua fabricação; aguardente em raros barris; manteiga, fumo, rapé, açúcar ou melado em formas, esporas, freios para bridas e outros acessórios para seus cavalos, excetuando as selas as quais, em porção sensível, vêm dos próprios distritos; ornamentos de ouro e prata encontram mercado com certos preços. Os mascates vêm de povoação em povoação, de fazenda em fazenda, trocando suas mercadorias por gado de todo tipo, queijos e couros de bois.» [Pág. 167].

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